segunda-feira, 9 de março de 2009

Do mistério para o conhecimento através da palavra

Do mistério para o conhecimento através da palavra
Prof. Zeferino – Universidade de Santo Amaro

H
umildade, ‘modéstia’ – do latim humilitasatis – e também humilis (humilde ação), revela a essência do significado desta palavra. No âmbito da educação pode significar uma atitude, perante o desconhecido. Aquele que tudo, ou quase tudo, crê saber ou conhecer, é repleto de “certezas” a respeito do que, no fundo, desconhece. Confunde o “acho que” com o “é isso mesmo” e... pronto. Entre o senso comum e o conhecimento de base epistemológica residem processos que buscam construir um discurso a respeito de um objeto de conhecimento. Transitamos entre a Doxa (o conjunto das impressões primeiras a respeito de algo) e o Logos (aqui entendido como um discurso construído pela razão). Entre estes dois pólos que buscam enfrentar o desconhecido, encontra-se um processo de dialogicidade e problematização mediado pela palavra. Ler e escrever o mundo, eis a razão. Dizendo de outro modo, somos seres que trafegam pela vida diante do desconhecido. Por mais que se conheça a respeito de um assunto, ainda assim não se conhece o mesmo em toda sua plenitude e profundidade, aspecto que provavelmente motivou o filósofo Bertrand Russel a afirmar que “todo conhecimento é incerto, inexato e parcial”. Conhecemos cada vez mais, sobre cada vez menos, um processo contínuo/descontínuo de construção de especialistas e suas especialidades.
O mistério e o conhecimento andam de modo inseparável, mas o primeiro é incomparavelmente maior do que o segundo. O que sabemos afinal sobre o mundo? Nem dois milênios e meio que nos separam da Grécia, berço da filosofia ocidental, nem mesmo toda a ciência de Galileo, Newton, Einstein, Bohr e Darwin, somente para citar alguns dos referenciais fundamentais, dão conta do todo, de sua complexidade. Falta-nos uma meta semântica, porque estamos e somos imersos em mistério e assim sair do próprio mundo para compreendê-lo, ainda que nossa capacidade de abstração possa fazê-lo sob determinadas circunstâncias. Sempre que nos deparamos com algo que não conhecemos somos sensibilizados a construir hipóteses. Suponhamos como exemplo, que tenhamos recebido um presente de aniversário, numa embalagem fechada, e que nos tenham desafiado a adivinhar o que há dentro da caixa. O que faríamos? Sacudiríamos a caixa? Bateríamos com os dedos sobre ela? Estimaríamos o peso? Estudaríamos a forma? Enfim, que informações procuraríamos obter para ter pistas a respeito daquilo que se esconde dentro da caixa? Eis um aparentemente banal envolvimento direto com o mistério.
De fato, com tudo aquilo que desconhecemos e nos deparamos, ao longo da vida, temos “caixas fechadas”. Não sabemos, ao certo, o conteúdo de cada uma delas e procuramos investigar o mistério, de modo a poder formar uma idéia do que se trata. E, para isso, vamos nomeando as coisas, atribuindo-lhes significados – signos - cada vez mais conhecendo o objeto do saber, lançando luz sobre o desconhecido, pois por princípio estamos diante do mistério, porém sem jamais tê-lo em saber na sua totalidade. Podemos compreender que quando queremos conhecer algo começamos “achando que”, isto é, lançando hipóteses a respeito do que possa vir a ser o objeto de conhecimento. Somente através do percurso investigativo e reflexivo que vamos fazendo é que vamos construindo conhecimento a respeito do objeto do saber. Dito em outras palavras, caminhamos da doxa para o logos, isto é, do “eu acho que” para o “é provável que assim o seja, conforme se deduz ou se apresenta”. Quando, retomando ainda uma vez o exemplo do presente de aniversário, nos deparamos com o desconhecido, temos o objeto em si – o presente e a caixa onde o mesmo está guardado. É a curiosidade, na esfera de nossa interioridade, que nos motiva à descoberta! São fenômenos de natureza externa, mas também interna a nós mesmos; dimensões que se interpõem e interagem para a construção de novos saberes a respeito do desconhecido. Dizendo de outra forma, ampliamos e aprofundamos o conhecimento, como nova luz a brilhar, um sentimento que se traduz por uma centelha do reino dos céus; como metaforicamente diríamos, um insight no imponderável espaço-tempo-informação de nossa mente. No entanto, àquele que se recusa a perceber-se pobre em conhecimento, por confundir a doxa com o logos, por se julgar conhecedor a ponto de desprezar o mistério, o desconhecido, o novo, a este as trevas devem rondar. Representa nossas atitudes radicais, expressas por certezas dogmáticas, que não abrem chance à diversidade de opiniões e visões. Geralmente tais perfis tendem a ser violentos, impositivos e autoritários, criando ambientes hostis ao convívio, o que poderíamos dizer, tendendo a nos afastar da oportunidade de ignorar para conhecer.
É mesmo possível que grandes catástrofes histórico-sociais tiveram suas causas fundamentadas em interesses particulares e convicções que se radicalizaram, o que dá no mesmo dizer, fundamentadas nas ilusões de uma ideologia ou de um momento. Aqui nascem os penares e os pesares inevitáveis que podem variar desde grandes dramas vividos por uma nação, até ao cotidiano de uma sala de aula ou do recinto de um lar, ambientes nem sempre tão acolhedores quando o deveriam ser. De pensamentos a palavras e destas e com estas a gestos e atitudes que demarcarão a tênue linha entre o bem que se faz e o mal que não se quer viver é que caminhamos, tropeçamos, caímos nos erguemos, vivemos e também morremos. A palavra constrói e descortina mundos, derruba imensos edifícios, representa estados da alma, compõe, canta e dança também; é música suave ao ouvido e também o tremor de um terremoto. Doce e encantadora, também machuca, fere e mata. Dá-nos a viver e a conhecer o mundo, mas quando amarrada no corpo pode nos fazer adoecer... É nossa mais intensa expressão e dela somos produto; com ela construímos a cultura e através dela geramos esperança, mas também frustrações e tudo mais.
Como crianças que se encantam ao tocar seixos na praia, ouvir a música do vento, ou ver o arco-íris e ficarem tomadas pela curiosidade que lhes motiva a experimentar e a indagar sobre estes mistérios, assim também nos permitamos viver como seres do conhecimento ganhando a cada instante o reino dos céus, reservado para aqueles que têm a coragem de reconhecer que muito pouco sabem.

Referências bibliográficas
Novo Testamento 5 Mateus 3.
CARVALHO NETO, C. Z. & MELO, M. T. E agora, professor?
Por uma Pedagogia Vivencial. São Paulo, IFCE: 2004.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Nova cruzada da Educação

Lei de Responsabilidade Educacional (LRE) está em discussão noCongresso
Rosângela Bittar escreve para o "Valor Econômico":
Quase 25 anos depois de uma grande cruzada parlamentar em defesada Educação, representada na luta do senador capixaba João Calmon, já falecido, para aprovar emenda constitucional que obrigou União a aplicar 13% e Estados e Municípios 25% em manutenção e desenvolvimento do ensino, inicia-se este ano umanova iniciativa também parlamentar neste campo.
A autoria é praticamente consensual e multipartidária, existem já escritos e apresentados pelo menos cinco anteprojetos de lei, mas na liderança do movimento, que criou seus alicerces na Comissão de Educação da Câmara, está a deputada goiana Raquel Teixeira(PSDB): trata-se de instituir a Lei de Responsabilidade Educacional (LRE).
Tendo como parâmetro a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) ecomo meta conseguir, na Educação, os resultados que a lei fiscal obteve no controle dos gastos públicos e expectativa de seu equilíbrio, os deputados envolvidos na nova campanha conseguiram o apoio da Unesco (órgão das Nações Unidos para Educação, Ciênciae Cultura) e de várias instituições que atuam no setor e representam profissionais e especialistas da comunidade educacional.
Há, já em tramitação, um projeto básico, o 247/2007, do deputado também goiano Sandes Junior (PP), que propõe a criação da Lei de Responsabilidade Educacional. Este incorporou vários outros com o mesmo teor, entre os quais se destaca uma proposição do então deputado mineiro Paulo Delgado (PT) que, não tendo sido reeleito para a atual legislatura, teve agora seu projeto encampado pelo deputado matrogrossense Carlos Abicalil (PT). Os deputados Raul Henry (PMDB-PE), Marcos Montes (DEM-MG) e Carlos Souza (PP-AM) também já sugeriram seus textos, e todos eles sob a mesmajustificativa.
Defendem, uma vez que já existem recursos financeiros que podem ser suficientes para a execução de uma política educacional séria, a adoção de medidas que levem à melhor gestão desses recursos, com mais resultados qualitativos. Em todos os projetos, cuja apreciação se iniciou na Comissão de Educação, por onde transitaram os parlamentares que se interessaram pelo assunto, há destaque para os riscos da leniência com a omissão e o desperdício dos recursos, além, e principalmente, da impunidade.
Alegam os deputados terem ciência de que "milhões de crianças deixam de receber a merenda escolar por falta de recursos desviados pra outros projetos e atividades".
Dizem que pelas mesmas razões escolas não são construídas ou conservadas e os professores permanecem recebendo como remuneração e velha miséria, da qual já se queixaram em prosa, verso e protesto. "O risco dessa irresponsabilidade socialpública com a educação brasileira é o recrudescimento doanalfabetismo, da evasão escolar e do abandono da escola, entreoutros sérios e irremediáveis estrangulamentos na organização edesenvolvimento da educação básica".
Os dispositivos constitucionais e as leis disponíveis exigem instrumentos que os tornem eficazes, e entre esses tem que estar, sob pena da eterna ineficiência, aqueles direcionados para, segundo definem os autores dos projetos em sua argumentação,"coibir a prática do desmando público com relação à aplicação deverbas, estabelecendo as circunstâncias e condições pelas quais a autoridade pública poderá ser punida"
A direção da Câmara já criou uma comissão especial para trabalharna formulação e debate da lei. Porém, isto ocorreu há quase umano e os líderes até hoje não indicaram os representantes de seuspartidos no grupo.
Ao mesmo tempo em que aguarda a instituição da comissão, adeputada Raquel Teixeira, uma líder informal do movimento pela Lei de Responsabilidade Educacional, e até por ser integrante da organização "Todos pela Educação", leva adiante uma iniciativa sua que já propunha fundamentos desta lei de responsabilidade sem denominar como tal o projeto que apresentou.
Em meados do ano passado, um seminário internacional sobre ética e responsabilidade na Educação, organizado em Brasília pelacomissão da Câmara, reuniu a Unesco, o Todos pela Educação, os Conselhos de Secretários de Educação e Nacional de Educação, a União dos Dirigentes Municipais de Educação, professores einteressados no assunto, aprofundou a discussão sobre a Lei de Responsabilidade e concluiu: "Os participantes insistem sobre aimportância de ser aprovada pelo Congresso Nacional uma Lei de Responsabilidade Educacional, que possa regular um conjunto de responsabilidades compartilhadas entre os vários atores da educação brasileira".
Coordenadora desse seminário, a deputada Raquel Teixeira retomaneste reinício de ano legislativo, imediatamente após o Carnaval, providências para que sejam aplicadas as suas recomendações. Antes mesmo de o assunto despertar o interesse que agora se vê, adeputada havia apresentado um projeto de lei, o de número 7420 de 2006, antes portanto de todos os demais,que dispõe sobre a qualidade da educação básica e a responsabilidade dos gestores públicos na sua promoção.
Nele, havia incluído algumas normas de apuração de responsabilidades e punição ao mal feito, já sugerindo medidas inspiradas na lei de responsabilidade fiscal. "Em 2000 o Brasil aprovou uma Lei de Responsabilidade Fiscal que disciplinou areceita e despesa da União, dos Estados e Municípios, colocando o país no rumo da modernidade fiscal que abriu caminho para a modernidade econômica e social", diz Raquel Teixeira."
No espírito desta - afirma a deputada - é necessária uma Lei deResponsabilidade Educacional que dê à educação o tratamento deprioridade e responsabilidade que permitirá colocar o país em umnovo patamar de desenvolvimento". Segundo Raquel, a LRE, quecomeçará a ser redigida na comissão especial, vai essencialmentetipificar os crimes de responsabilidade e definir penalidades.
(Valor Econômico, 4/3)

quarta-feira, 4 de março de 2009

Dicas para uso de algumas expressões

A TEMPO, EM TEMPO
Os moradores ao redor da usina nuclear receberam doses fatais de radioatividade, a menos que tenham sido retirados a tempo/em tempo.

Ambas as expressões são corretas. Mas com “de” na sequência, “a tempo” é mais usual; por exemplo: Felizmente chegou a tempo de pegar o avião.

BALÉ
A menina estuda balé com uma ex-bailarina do Ballet Stagium.

A palavra brasileira para o francês ballet é escrita balé, com acento agudo. No meio artístico se ouve também a palavra balê, pronúncia à francesa, mas os dicionários não registram a variação com o circunflexo.

CARNÊ
O cliente receberá os carnês pelo correio.

Esta é outra palavrinha que aparece muitas vezes escrita em francês, carnet. Vamos usar a grafia brasileira? Carnê, ou então bloco, bônus.

CARPETE
Os novos carpetes são antialérgicos e antimofo.

Novamente, deve-se banir a grafia estrangeira carpet. No Brasil fala-se em carpete e também em carpê, no entanto esta variação ainda não está dicionarizada.

CONTA CORRENTE
O senhor não gostaria de abrir uma conta corrente em nosso banco?

As leitoras Simone Verdini e Mirian Miguel solicitaram detalhes sobre este caso, uma vez que viram a grafia com hífen. De fato, o dicionário Houaiss traz “conta-corrente”, o que é um exagero, pois se trata não de substantivo composto mas de um substantivo [conta] qualificado por um adjetivo [corrente], assim como conta especial, conta conjunta, conta aberta, conta redonda... Pensemos então que tenha sido um lapso. O plural correto, portanto, é contas correntes. No dicionário Aurélio século XXI vamos encontrar (o) “contas-correntes” como designação de um livro onde se escrituram as contas: “Passou a vista no contas-correntes da empresa”, palavra que todavia não está em uso no Brasil. Já o novo “mini Aurélio” (2009) acerta o passo e consigna conta corrente como o registro de receitas e despesas ou a própria conta bancária.

TÍQUETE
O valor do tíquete que não for usado será ressarcido.

Infelizmente há muita gente que ainda se vale da grafia inglesa [ticket] para o nosso tíquete, ou bilhete, cupom, ingresso. É também importante que se observe o hífen na composição com outro substantivo: tíquete-refeição, tíquete-restaurante, tíquete-alimentação.

* Maria Tereza de Queiroz Piacentini Diretora do Instituto Euclides da Cunha e autora dos livros 'Só Vírgula', 'Só Palavras Compostas' e 'Língua Brasil – Crase, pronomes & curiosidades'

segunda-feira, 2 de março de 2009

O FIM DO EMPREGO

Folha de São Paulo, 02/03/2009.
NOSSOS JOVENS universitários estão voltando às aulas. Isso me lembra que oprincipal desafio das instituições educacionais no mundo atual é ofereceraos estudantes a base que lhes permita transformar cada instante da vidaprofissional futura em uma oportunidade de aprendizado, de participação e deautodesenvolvimento, que é uma condição para o crescimento de cada um e dasempresas às quais servirão.
Nesse sentido, as universidades precisam formar indivíduos críticos, capazesde conferirem riqueza, inovação e versatilidades às organizações que osatraiam, enquanto, simultaneamente, concretizam os planos de vida e decarreira que formularam para si próprios. Indivíduos que não tenham uma atitude passiva perante a própria história, porque o emprego e o saláriocada vez mais deixarão de existir.
A nova economia não admite nem assalariados nem patrões. As empresas estãoem busca de empresários dos conhecimentos, das habilidades e dascompetências que dominam, capazes de fazer acontecer, exercendo a liberdade com responsabilidade.
Isso significa que as oportunidades de trabalho estarão reservadas para quemtenha sido preparado não para obedecer ordens, mas para conquistar esatisfazer clientes e, como autêntico parceiro, se autorremunerar por meiode parte dos resultados que produzir.
Os resultados gerados têm que ser maiores do que as necessidades desobrevivência da empresa e de quem os gerou, de modo que o excedente possaservir ao crescimento de ambos e à criação de novas oportunidades detrabalho, sedimentando ciclos de crescimento orgânico que se traduzam emprocessos contínuos de renovação de lideranças e de sucessão de gerações.
O que as organizações que atuam em ambientes negociais cada vez maiscomplexos e competitivos esperam é que seus futuros integrantes sejampreparados para ser protagonistas de atos e fatos que façam diferença,impulsionados pelas próprias forças e pela força das circunstâncias, compensamento global e ação local, decidindo com eficácia e fazendo comeficiência, dotados de criatividade embasada no conhecimento e na intuição ede uma visão otimista do futuro.
Ao formar essa nova geração, nossas universidades atuarão como agentes deemancipação pessoal, estimuladoras da autonomia produtiva e vetores de umanova consciência que refuta o tradicional conceito de emprego, altera opadrão de dependência do trabalhador perante o mercado e transcende asvisões estreitas que preferem apostar no anacrônico conflito entre o capitale o trabalho.

Considerações em torno do ato de estudar[1]

Paulo Freire

Toda bibliografia deve refletir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo de usá-la, ou se a bibliografia em si mesma, não é capaz de desafiá-los, se frustra, então a intenção fundamental referida.
A bibliografia se torna um papel inútil, entre outros, perdido nas gavetas das escrivaninhas.
Essa intenção fundamental de quem faz a bibliografia exige um triplo respeito: a quem ela se dirige, aos autores citados e a si mesmos. Uma relação bibliográfica não pode ser uma simples cópia de títulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere, deve saber o que está sugerido e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez, deve ter nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio. Desafio que se fará mais concreto na medida em que comece a estudar os livros citados e não só a lê-los por alto, como se os folheasse, apenas.
Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica sistemática. Exige disciplina intelectual que ano se ganha a não ser praticando-a.
Isto é, precisamente, o que a “educação bancária”
* não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade.
Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede, afinal não é a compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-lo, terá respondido ao desafio.
Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação profunda.
Esta postura crítica, fundamental, indispensável ao ato de estudar, requer de quem a ele se dedica:
a) Que assuma o papel de sujeito deste ato.
Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se põe em face do texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força mágica. Se se comporta passivamente, “domesticamente”, procurando apenas memorizas as afirmações do autor. Se se deixa “invadir” pelo que afirma o autor. Se se transforma numa “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que ele retira do texto para pôr dentro de si mesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras dimensões do conhecimento. Estudar é uma forma de uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva, alienar-se ao texto, renunciando assim à sua atitude crítica em face dele.
A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a razão de ser dos fatos cada vez mais lucidamente.
Um texto estará tão melhor estudado quando, na medida em que dele se tenha uma visão global, a ele se volte, delimitando suas dimensões parciais. O retorno ao livro para esta delimitação aclara a significação de sua globalidade.
Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais do texto que, em sua interação, constituem sua unidade, o leitor crítico irá surpreendendo todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no índice da obra. A demarcação destes temas deve atender também ao referencial de interesse do sujeito leitor.
Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser despertado por um trecho que lhe provoca uma série de reflexões em torno de uma temática que o preocupa e que não é necessariamente a de que trata o livro em apreço. Suspeitada a possível relação entre o trecho lido e sua preocupação, é o caso, então, de fixar-se na análise do texto, buscando o nexo entre seu conteúdo e o objeto de estudo sobre que se encontra trabalhando. Impõe-se-lhe uma exigência: analisar o conteúdo do trecho em questão, em sua relação com os precedentes e com os que a ele se seguem, evitando, assim, trair o pensamento do autor em sua totalidade.
Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua preocupação, deve-se separá-lo de seu conjunto, transcrevendo-o em uma ficha com um título que o identifique com o objeto específico de seu estudo. Nestas circunstâncias, ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a propósito das possibilidades que o trecho lhe oferece, ora pode seguir a leitura geral do texto, fixando outros trechos que lhe possam aportar novas meditações.
Em última análise, o estudo serio de um livro como de um artigo de revista implica não somente numa penetração crítica em seu conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente inquietação intelectual, num estado de predisposição à busca.
b) Que o ato de estudar, no fundo é uma atitude frente ao mundo.
Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto.
Os livros em verdade refletem o enfrentamento de seus autores com o mundo. Expressam este enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da realidade concreta estarão expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar é também e sobretudo pensar a prática e pensar a pratica é a melhor maneira de pensar certo. Desta forma, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade, em suas relações com os outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa. A de quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca.
O exercício desta postura curiosa termina por torná-la ágil, do que resulta um aproveitamento maior da curiosidade mesma.
Assim é que se impõe o registro constante das observações realizadas durante uma certa prática; durante as simples conversações. O registro das idéias que se têm e pelas quais se é “assaltado”, não raras vezes, quando se caminha só por uma rua. Registros que passam a constituir o que Wright Mills chama de “fichas de idéias”
**.
Estas idéias e estas observações, devidamente fichadas, passam a constituir desafios que devem ser respondidos por quem as registra.
Quase sempre, ao se transformarem na incidência da reflexão dos que as anotam, estas idéias os remetem a leituras de textos com que podem instrumentar-se para seguir em sua reflexão.
c) Que o estudo de um tema específico exige do estudante que se ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia que se refere ao tema ou ao objeto de sua inquietude.
d) Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de que ele trata. Esta relação dialógica implica na percepção do condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo do leitor.
e) Que o ato de estudar demanda humildade.
Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com a atitude crítica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, as vezes grandes, para penetrar na significação mais profunda do texto. Humilde e crítico, sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio, pode estar mais além de sua capacidade de resposta. Nem sempre o texto se dá facilmente ao leitor.
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor instrumentar-se para voltar ao texto em condições de entendê-lo. Não adianta passar a página de um livro se sua compreensão não foi alcançada. Impõe-se, pelo contrário, a insistência na busca de seu desvelamento. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado.
Não se mede o estudo pelo número de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de livros lidos num semestre.
Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las.

[1] Escrito em 1968, no Chile, este texto serviu de introdução à relação bibliográfica que foi proposto aos participantes de um seminário nacional sobre educação e reforma agrária.
* Sobre “educação bancária”, ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, 4ª ed., (N.E.).
** Wright Mills – The Sociological Imagination.